quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Gestão por Competências: Oportunidade e Desafio para a Gestão de Recursos Humanos

Há não muitos anos atrás, todo o processo de gestão de recursos humanos assentava nas funções. As organizações tendiam a apresentar uma estrutura hierárquica e funcional, com actividades e tarefas bem definidas, circunscritas e relativamente constantes. Assim, o processo de gestão de recursos humanos iniciava, sempre, com uma descrição e análise de funções, que, genericamente, consistia na especificação das tarefas que deviam ser realizadas numa determinada actividade ou função. Esta lógica, bem conhecida dos tempos da administração científica do trabalho protagonizada por Taylor (se bem que ainda muito utilizada em diversas organizações) tendia a dividir uma função em actividades, que, por sua vez, eram divididas em tarefas cada vez mais simples. Se é certo que num primeiro momento esta abordagem conheceu vantagens interessantes, nomeadamente no que respeita ao balizamento do trabalho a realizar pelos profissionais, cedo se percebeu que se tratava de uma abordagem relativamente atomizadora do indivíduo enquanto profissional, transformando-o num “robot” humano.


Com a crescente aceleração da mudança e as alterações constantes que os factores externos induzem nas organizações, as estruturas organizacionais, tradicionalmente baseadas em modelos de produção intensiva, depressa ficam ultrapassadas dando lugar a estruturas flexíveis, baseadas em modelos matriciais e por projecto que são pouco compatíveis com a gestão baseada em funções. Ainda que estas não deixem de existir, passou a enfatizar-se a pessoa na função em detrimento da função propriamente dita. O profissional de excelência já não é aquele que cumpre escrupulosamente com as suas tarefas, mas aquele que é capaz de se ajustar e rapidamente reorientar o seu desempenho face às exigências da organização. Surge, nesta evolução, o conceito de competência. Ainda que se pense tratar-se de um conceito recente, na realidade, já em 1973 David McClelland dava conta da necessidade de uma nova abordagem no processo de selecção de pessoas. Tendo constatado que o método tradicional baseado em testes de QI e de personalidade não eram suficientes para predizer o futuro desempenho do profissional, McClelland (1973) defendeu que a avaliação das pessoas não podia estar desligada dos contextos profissionais. Importava, então, identificar as características das pessoas de elevado desempenho, para que no processo de selecção fossem identificadas essas características nos candidatos.


Apesar de ser esta a primeira abordagem ou perspectiva relativa às competências, é hoje sabido que não foi nem é a única. Estando longe de um consenso relativamente a um conceito / perspectiva única sobre o tema das competências, é possível, no entanto, integrar as diferentes orientações em duas grandes perspectivas ou abordagens (Woodruffe, 1991):

  • Abordagem relacionada com o trabalho (work-related), onde a competência compreende a execução de actividades relacionadas com a área de trabalho, estando, por isso, muito associada a standards. Esta abordagem, tida como referência, por exemplo, pela Management Charter Initiative nos Estados Unidos, iniciativa que se destinou a identificar os padrões de desempenho para os gestores, considera, por exemplo, que “recrutar e seleccionar pessoal” é um standard, que depois pode ser dividido num conjunto de elementos, tais como “definir os requisitos do pessoal”, “avaliar e seleccionar o pessoal de acordo com os requisitos da organização e do grupo”, entre outros. Na linguagem anglo-saxónica, nesta abordagem, a palavra utilizada para designar competência é competence.
  • Abordagem relacionada com as pessoas (person-related), cujo enfoque é colocado nas pessoas, ou seja, aquilo que é necessário para a realização de uma determinada actividade. Refere-se, então, aos comportamentos que o indivíduo deve exibir em ordem a desempenhar as tarefas ou actividades da sua função com competência. Utilizando, na linguagem anglo-saxónica, a palavra competency, esta abordagem parte dos comportamentos específicos e agrupa-os sob a forma de competências.


More (2002) acrescenta a estas duas abordagens ou perspectivas, uma terceira (competencies), que compreende a competência como os atributos que sustentam os comportamentos, se quisermos, muito próxima de parte da definição de competência defendida por Boyatzis (1982), que concebe a competência como as características basilares da pessoa que resultam num desempenho efectivo ou superior de uma profissão, definição que alguns autores (More, 2002) discutem se está mais associada à competency ou às competencies.
Nesta linha, as diferentes perspectivas de abordagem das competências estariam num continuum, em que cada abordagem serviria como suporte à abordagem seguinte, ou seja, em que os atributos (características do indivíduo) serviriam de suporte aos comportamentos exibidos e estes, por sua vez, estariam na base do cumprimento dos padrões de trabalho requeridos.


Ainda que do ponto de vista da gestão organizacional seja absolutamente fundamental a abordagem ou conceito de competência de que se parte, a gestão de recursos humanos baseada em competências está muito para além desta preocupação ou decisão. Gerir por competências implica, antes de tudo (ou pelo logo a seguir à decisão sobre o tipo de abordagem a adoptar), proceder ao mapeamento de competências da organização. E aqui importa referir que não é possível utilizar numa organização um mapa de competências de outra organização (ainda que idêntica), sendo, todavia, este o maior erro que actualmente cometem a maioria das organizações que pensam adoptar as competências como o referencial para a gestão das pessoas.
Sem pretender no âmbito deste artigo aprofundar esta temática, faz sentido esclarecer que existem, essencialmente, 2 tipos de abordagem no processo de mapeamento de competências (Vieira & Varão, 2006):

  1. Abordagem top-down, em que as competências tendem a derivar da missão, da visão, dos valores e objectivos estratégicos até chegar, eventualmente, a uma análise mais operacional.
  2. Abordagem bottom-up, inversa à anterior, em que se parte da análise funcional e, em muitos casos, não se trabalha com base nas orientações estratégicas da organização.


Sem querer tomar partido por uma ou outra abordagem, interessa referir que, em nosso entender qualquer sistema de gestão deve estar estreitamente ligado às orientações estratégicas da organização, por um lado, e que qualquer intervenção ou mudança organizacional deve, entes de tudo, merecer o envolvimento do topo estratégico. Ainda no que respeita ao mapeamento, é relativamente habitual distinguir tipologias de competências, sendo, a mais usual a distinção entre as competências transversais e as competências específicas (Silva, 2006).


Realizado o mapeamento, importa adequar as práticas de gestão de recursos humanos à abordagem por competências. Entre os diversos subsistemas de gestão de recursos humanos, podem, desde já, ser identificados aqueles em que a abordagem baseada em competências pode traduzir-se em mais-valias imediatas, nomeadamente o recrutamento e selecção, a gestão de desempenho e a formação. Sem dúvida que a existência de portefólios de competências devidamente estruturados, resultantes do processo de mapeamento, é uma base de trabalho fundamental para a reorientação destes subsistemas, mas os mesmos não se constituem como o garante, por si só, de uma gestão baseada em competências. É, por isso, necessário re-definir a forma como estes subsistemas funcionam para que as mais-valias de uma gestão baseada em competências possam surgir. Ao nível do recrutamento e selecção, são múltiplos os métodos utilizados, mas de acordo com Spencer & Spencer (1993), os que apresentam maior correlação entre os resultados obtidos pelo candidato e a predição do seu desempenho futuro são os centros de avaliação (assessment centers) e as entrevistas comportamentais (behavioral event interview). Qualquer um destes métodos obriga a uma boa preparação do processo de selecção. No caso das entrevistas, método mais usado em processos de selecção, para além de todas as tarefas associadas a uma entrevista de selecção, é necessário que, para cada competência a ser avaliada, sejam identificadas previamente e colocadas ao candidato questões específicas, utilizando, nomeadamente a técnica STAR (situation, tasks, action, results), de forma a compreender como é que o candidato se comportou em situações passadas, permitindo, com alguma margem de segurança, predizer o seu comportamento futuro.


No caso do sistema de gestão de desempenho, a adopção do modelo de competências permitirá passar progressivamente dos sistemas de avaliação para os sistemas de gestão de desempenho. Quer isto dizer que não interessa tanto avaliar para punir ou premiar (enfatizando a relação dos resultados da avaliação com a retribuição, por exemplo), mas avaliar para melhorar progressivamente a performance do colaborador. Num modelo de gestão por competências, existe um perfil de competências ideal para o profissional que vai sendo progressivamente comparado com o nível real de competências. É função dos diferentes actores (nomeadamente chefia e colaborador) definirem e implementarem planos de acção em ordem a eliminar eventuais lacunas no processo de monitorização das competências.
No que à formação diz respeito e, tendo em conta o atrás referido, as vantagens parecem imediatas, nomeadamente no que se refere à possibilidade que a gestão por competências permite relativamente à realização de um diagnóstico de necessidades alinhado estrategicamente, identificando gaps de competências e possibilitando a sua avaliação eficaz no período pós-formação, permitindo, desta forma, que o processo formativo seja orientado para resultados e melhoria contínua.


Parece, então, claro que a opção por uma abordagem à gestão de recursos humanos baseada em competências apresenta uma oportunidade para as organizações em geral e para os gestores de recursos humanos, em particular. No entanto, importa que, numa primeira instância, estes próprios responsáveis e, em segundo lugar, e não menos importante, os gestores de topo compreendam que a gestão de pessoas com base em competências não se faz da noite para o dia e que só faz sentido investir nesta abordagem se as organizações valorizarem realmente as pessoas como o “recurso” mais importante de que dispõem. Este constitui, afinal, o desafio de qualquer organização.


Bibliografia

  • Boyatzis, R. (1982). The Competent Manager – a Model for Effective Performance. New York: John Wiley & Sons.
  • McClelland, D. (1973). Testing for competence rather than intelligence. American Psychologist. 28, pp. 1-14
  • More, D.; Cheng, M & Dainty, A. (2002). Competence, Competency and Competencies: Performance Assessment in Organisations. Work Study; 51, 6; pp. 314-319.
  • Silva, P.; Cabral-Cardoso, C & Estêvão, C. (2006). As Competências Transversais dos Diplomados do Ensino Superior: Perspectiva dos Empregadores e dos Diplomados. Guimarães: TecMinho.
  • Spencer, L. M. & Spencer, S. M. (1993). Competence at Work: Models for Superior Performance. New York: John Wiley & Sons, Inc.
  • Vieira, F. & Varão, S. (2006). Metodologia e Políticas de Intervenção em Gestão de Competências, in Ceitil, M. Gestão e Desenvolvimento de Competências. Lisboa: SílaboWoodruffe, C. (1991). Competent by Any Other Name. Personnel Management; 23, 9; pp. 30-33

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Este blog pretende ser um espaço de partilha e reflexão sobre os temas da formação e desenvolvimento de recursos humanos. Trata-se, afinal, de áreas fundamentais para a competitividade das organizações e que nem sempre são tratadas com o cuidado que merecem.